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Sobre as montanhas e o verdadeiro “subir na vida”

Provavelmente você deve ter lido algo sobre um resgate que o Corpo de Bombeiros realizou no Picos dos Marins no dia 05 de janeiro de 2022 quando um coach motivacional levou cerca de 60 pessoas para montanha, contrariando várias regras básicas do montanhismo, desde a escolha do local, o número de participantes, época do ano, clima, preparo físico, conhecimento técnico, etc.

Felizmente parte do grupo desistiu ao longo da subida e retornou para base da montanha, o que pode ter evitado uma situação ainda pior. Mas outras 32 pessoas seguiram o coach debaixo de chuva até o cume, no que era uma das atividades do programa motivacional intitulado “Pior ano da sua vida”.

Chegando lá eles montaram um acampamento com o objetivo de passar a noite no topo da montanha. Além da chuva, o vento estava fortíssimo e destruiu as barracas. As péssimas condições fizeram com que eles acionassem os Bombeiros, que iniciaram o resgate de madrugada, enfrentando as mesmas condições para permitir que aquelas pessoas pudessem sair da montanha com segurança.

Durante o período entre o acionamento e o efetivo resgate, aquelas pessoas ficaram expostas no cume dos Marins (2.420m de altitude), sob risco de hipotermia por causa da chuva, vento e da baixa temperatura. O resgate só foi finalizado no dia seguinte.

Esse foi o resumo de uma atividade desastrosa realizada por esse coach motivacional, que disse ter acionado os Bombeiros “por precaução”. Mas, vejamos bem, o Corpo de Bombeiros não foi até lá para ver se estava tudo bem. Eles foram lá para realizar um resgate, pra tirar as pessoas de uma situação de emergência, onde elas não possuíam mais controle e precisavam de ajuda – isso não é precaução, é SALVAMENTO. (Parabéns pelo trabalho, CBM)

Foto do grupo após resgate no Pico dos Marins

Foto do grupo após o resgate dos Bombeiros / Foto: Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo – Divulgação

Esse é mais um caso onde faltou o mínimo de conhecimento básico, uma boa dose de humildade e respeito, para baixar a cabeça e descer antes que houvesse a necessidade de expor todos que estavam lá a um perigo maior. Líderes de verdade sabem reconhecer quando o cenário não é mais favorável e quando insistir no erro significa ser irresponsável e imprudente.

Uma das postagens do coach no Instagram trazia a frase: “só os irresponsáveis chegam no topo”. O fato é que isso não está errado, é verdade mesmo. Só os irresponsáveis chegam no topo de uma montanha em condições totalmente inadequadas. Os irresponsáveis desconhecem um ditado popular do montanhismo que diz: “o topo é somente a metade do caminho”. Afinal de contas, não adianta nada subir e não conseguir voltar depois.

Nós vivemos numa época na qual fotos, vídeos e stories influenciam muitas pessoas, e esse caso pode ter servido de mau exemplo para muita gente, infelizmente. Por isso precisamos ter cuidado com o que vemos nas redes sociais dos chamados influencers, motivadores e coachs. E isso não é implicância com quem usa as redes sociais para fazer divulgação de um trabalho sério, mas é uma lembrança para você ter cuidado com quem você segue e quem realmente merece ser levado em consideração. Existem montanhistas e instituições sérias que possuem programas similares, onde a montanha é o instrumento para a superação de limites, trabalho em equipe, empoderamento e desenvolvimento de autoconfiança. A diferença é que eles são profissionais, têm respeito e conhecimento técnico sobre as montanhas.

E sim, o montanhismo realmente é um esporte transformador, mas é um esporte que demanda, entre outras coisas, respeito, ética e humildade.

Normalmente as pessoas se apaixonam pelo montanhismo após uma trilha curta pela natureza. Depois algumas delas passam para trilhas maiores, acampamentos, travessias – e assim vai. Mas é importante que essas pessoas procurem absorver conhecimento ao longo desse aprendizado prático e que elas tenham paciência com a evolução. Muitos acidentes acontecem quando as pessoas se sentem confortáveis para se aventurar por conta própria e ainda não possuem conhecimento suficiente para isso. Aí os erros comuns, como as roupas inadequadas, pouca água, falta de equipamentos e desorientação, acontecem. Por isso o aprendizado é importante, bem como o respeito com a evolução dentro do montanhismo – nada de pular etapas.

Em um dos comentários feitos após a notícia se espalhar o coach disse que não forçou ninguém a subir e que as pessoas estavam ali por sua conta, que elas eram responsáveis por si. Em alguns vídeos espalhados pela internet foi possível ver o coach tentando induzir um participante a continuar mesmo quando ele reclamava que a mochila não era adequada, que estava pesada ou após os guias alertarem que era melhor voltar. Quando alguém se propõe a levar um grupo de pessoas em uma atividade como essa, esse alguém é o responsável por elas, ainda mais quando algo dá errado.

Hipotermia, desorientação ou um incidente com raios são apenas alguns dos problemas que poderiam acontecer facilmente naquela situação, problemas que qualquer montanhista sério conhece bem. E que felizmente não aconteceram.

Esse acontecimento no Pico dos Marins, assim como tantos outros que aparecem na imprensa, são alertas para nos mostrar que as montanhas exigem respeito. Montanhismo é um esporte que requer humildade do praticante para reconhecer quando “não dá”.

Vamos deixar algumas dicas básicas para quem deseja começar nas trilhas e no montanhismo:

1. Respeite o seu preparo físico, equipamentos e conhecimento. Se você for um iniciante comece com trilhas curtas e contrate um guia experiente e habilitado;

2. Não guie seus amigos ou parentes em nenhuma trilha. Guiar envolve estar preparado para lidar com eventuais emergências no meio do percurso, reconhecer problemas, entre outras coisas;

3. Altimetria, vegetação, tipo de terreno, orientação, meteorologia, animais, primeiros socorros, equipamentos, duração da atividade, temperaturas, alimentação, hidratação… Existem infinitos detalhes que podem contribuir para algum problema durante uma atividade outdoor. Um planejamento prévio da atividade ajuda a antecipar e minimizar os possíveis riscos. Esse planejamento não é tão claro para quem está começando no esporte, por isso você deve se dedicar para aprender cada detalhe;

4. Existem cursos online, cursos presenciais, clubes de montanhismo, literatura, amigos mais experientes e muito conteúdo online. Estude com calma, tenha bom senso (consulte mais de uma fonte) e vá testando cada novo aprendizado gradualmente;

5. Montanhismo não é futebol de final de semana, ou seja, você vai precisar de mais itens do que um par de chuteiras, caneleiras e um uniforme. Equipamentos apropriados existem e devem ser utilizados de acordo com a atividade. Você não precisa começar comprando todos os melhores produtos do mercado, mas deve ter no mínimo os equipamentos adequados para a atividade que irá fazer e deve saber usá-los corretamente – quem aí se lembra do Padre e os balões?;

6. Tenha sempre na sua mochila (até nas trilhas de um dia): casaco impermeável com capuz, cobertor térmico aluminizado, lanterna de cabeça com pilhas reserva, canivete, isqueiro, kit de primeiros socorros, purificadores para água (clorin ou hidrosteril), telefone celular, água e comida com alguma folga. Mapa, bússola e um GPS (ou um telefone com um app de mapa offline) serão fundamentais se você se perder ou se confundir. Tenha certeza de que você sabe usar corretamente tudo o que está na sua mochila. Coloque os equipamentos em um saco estanque ou em um saco plástico grosso (bem fechado), isso te dará ainda mais segurança em caso de chuva;

7. Leia e ponha em prática os princípios de conduta consciente em ambientes naturais e os 7 princípios do mínimo impacto, dois conjuntos de regras para reduzir o nosso impacto nos espaços naturais, respeitar a fauna e os outros montanhistas. Nada deve ficar no espaço natural, nem uma casca de banana;

8. Não faça trilhas de longa duração em áreas de montanha no verão, e não acampe nas montanhas neste período do ano. As tempestades com raios são comuns no verão e podem pegar de surpresa os caminhantes. Antes de fazer qualquer caminhada na natureza verifique as condições do clima e não saia de casa em dias de previsão ruim. Escolha montanhas mais baixas e trilhas mais curtas, saia cedo de casa e volte antes do período da tarde. Durante o caminho fique sempre de olho nas nuvens, saia da montanha ao notar o menor sinal de chuva ou raios. Em algumas situações você não consegue ter uma visão completa da tempestade que se aproxima, por isso mesmo não se arrisque;

9. Quando você “força a barra” e se coloca em uma situação de perigo não está arriscando somente a sua vida, mas também está pondo em risco todos os outros que estão com você e a equipe de resgate que irá lhe retirar daquela situação, portanto, seja sensato.

Há anos a comunidade de montanhistas trabalha para melhorar a  difusão de conhecimento, a conscientização e redução dos impactos nas áreas naturais. Hoje em dia há muito conteúdo sério e de qualidade disponível através de cursos, eventos, palestras, livros, vídeos, blogs e sites para quem deseja “subir na vida” e desfrutar de tudo que as montanhas podem proporcionar de forma responsável e respeitosa.

É isso! O poder está na sua mente! Encha sua mente com conhecimento, reduza o peso da sua mochila e será mais fácil “subir na vida” e também nas montanhas!

Toca para cima, mas com respeito e humildade!

Trekker, montanhista, mochileiro e ciclista. Pratica esportes outdoor desde 1990. Apaixonado por equipamentos, fotografia, viagens, ciclismo, cerveja e tecnologia.

2 Comentários

  1. Perfeito!
    Qualquer atividade física exige um mínimo de conhecimento, e montanhismo também!
    Um esporte espetacular que só agrega quando bem praticado!
    🙌🏻🤜🏻🤛🏻⛰

  2. Top top top! Bom que deu uma freada naquela minha empolgação sem nenhum preparo. Agora, após fazer a leitura desse orientador, me sinto mais apto a me envolver nessa aventura. Obrigado por compartilhar!

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