Viagens e Aventuras

Relato do Trekking Gokyo e acampamento Base do Everest

Viagem realizada entre 10/04/11 – 29/04/11

O sol ainda não havia aparecido e a lua continuava sendo o único destaque no céu limpo. Às nossas costas ficava um grande rio de pedras e gelo, que descia das montanhas próximas, e havia sido transposto no dia anterior. À nossa frente, uma trilha inclinada, muito inclinada, marcava o começo do caminho que seguiríamos ao longo das próximas oito horas. Andar sobre a neve e o gelo, cruzar passagens estreitas com pedras soltas, passar por um elevado passo de montanha, com o ar já bastante rarefeito. No final do longo dia, apesar do cansaço e do frio, nada mais importava. Estávamos diante de um dos mais incríveis e belos gigantes de pedra da região. Cercada de montanhas mais elevadas, que ultrapassavam os 8.000 metros, o maciço com pouco menos de 7.000 metros, impressiona pela imponência e beleza. Os povos locais a chamam de Mãe, Ama Dablam, e a consideram a mais bela montanha do Himalaia. Estávamos no Himalaia. Mais alguns dias e estaríamos aos pés da montanha mais alta do planeta.

montanhas himalaia

Ao fundo o Ama Dablan

Não é difícil imaginar que esta cena poderia ter sido narrada da mesma forma pelos primeiros europeus que se aventuraram no coração do Himalaia. Mas esta é a descrição do nono dia de um trekking de dezessete dias pelo Khumbu, o distrito nepalês onde está localizado o Monte Everest. Não é à toa que cerca de 30 mil turistas chegam à Kathmandu, capital do Nepal, a cada temporada de montanha.
Também por conta do volume de turistas que enchem a região todo ano, um caminho alternativo à trilha clássica, que vai diretamente ao Campo Base do Everest, vem ganhando espaço. Além do menor número de pessoas, a possibilidade de cruzar por lagos sagrados de águas azul turquesa e florestas de rododendros, a flor nacional do Nepal, e encarar desafios, como a travessia de um passo de 5.420 metros, a trilha que leva ao Gokyo, e depois chega ao Campo Base do Everest, foi a escolha do nosso grupo para explorar o Himalaia.

A chegada em Kathmandu já nos dá ideia de que estamos em outro mundo. Tudo é novidade, principalmente para quem nunca tinha ido à Ásia antes. Deixamos o cansaço de lado e fomos explorar a cidade. O mais notável em Kathmandu é a importância da religiosidade na vida do nepalês. Embora 80% da população sejam hindus, a mistura entre budismo e hinduísmo parece estar em toda a parte. As duas religiões convivem harmoniosamente e isso ficava ainda mais aparente na visita às stupas Bodhnath e Swayambhunath (Templo dos Macacos), budistas, e ao templo de Pashupatinath, hinduísta.
Em Kathmandu ainda valeu a pena conhecer as Durbar Square, praças centrais de cada distrito (Kathmandu, Patan e Bhaktapur, formam a cidade de Kathmandu) que são consideradas patrimônio da humanidade. Passear por pequenas vilas rurais próximas a Kathmandu, e ver o cotidiano nepalês mais “original”, também fez esse começo de viagem bem especial.

Mas depois de três dias no caos da cidade, chegava a hora de pegar o bimotor que nos levaria até a pequena cidade de Lukla, a 2.800 metros acima do nível do mar, onde começaria nossa jornada. O voo é rápido, por volta de meia hora, mas reserva emoções. O avião vai parecendo cada vez mais delicado e desprotegido no meio das montanhas que vão aparecendo. E o vento não ajuda a acalmar os que preferem a firmeza do chão.

trilha Nepal Everest

Começo da trilha que leva ao acampamento base do Everest

Para quem tem realmente muito medo de voar, é possível chegar em Lukla fazendo um trekking de aproximadamente uma semana, saindo das cidades de Jiri ou Shivalaya, onde chegam ônibus vindo de Kathmandu. A trilha tem dificuldade mediana e pode funcionar como aclimatação para as elevadas altitudes que serão alcançadas depois de Lukla. A passagem por Lukla neste primeiro dia de trekking é rápida, com tempo apenas para um almoço e conhecer a equipe de nepaleses que nos acompanhariam como guias. O bom humor e a simpatia são marcas registradas dos nepaleses e a nossa equipe não foi exceção.

Um caminho bem tranquilo nos levou até o vilarejo de Phakding, a 2.610 metros, onde iríamos dormir no nosso primeiro lodge (abrigo de montanha). Para quem está acostumado a fazer trekking com acampamento selvagem, a primeira boa notícia: banheiro de verdade e banho razoavelmente quente. Para quem não está acostumado com a vida outdoor, o choque de realidade: banheiro no estilo turco, onde a privada fica no chão, e banho em um quartinho fora do prédio, com pouca água.

A comida servida é padrão ao longo de toda a trilha. Macarrão, arroz, sopas, alguns legumes e chás. Tudo sem muito tempero, para evitar os mais do que comuns “piriris” (embora eles continuem acontecendo, principalmente por conta dos hábitos de higiene menos rígidos dos nepaleses).

Depois de uma noite surpreendentemente quente, começa o primeiro desafio do trekking. Chegar até Namche Bazaar, a maior cidade do Khumbu, exige enfrentar uma subida de aproximadamente 1.000 metros de desnível. O caminho passa ao lado do Rio Dudh e temos que atravessar várias pontes que, felizmente, foram refeitas em metal, mais estáveis. Pouco tempo atrás, o trekking ganhava mais emoção com a travessia das pontes de madeira. Imagine cruzar um rio, a uma altura de quase 100 metros, dividindo a ponte de madeira com outros turistas, carregadores com mais de 30 kg nas costas e os iaques, animais típicos da região, parecidos com vacas, usados para transporte.

ponte elevada

Ponte na trilha até Namche Bazar

sherpa

Carregadores chegam a levar 30kg ou mais

Em Namche é possível ter bastante conforto, uma vez que a infraestrutura ali é maior. Na cidade também já se consegue ter o primeiro vislumbre do Everest. Do mirante na parte alta da cidade pudemos ver um bonito por do sol, com o Everest bem visível ao fundo, além de outros picos menores e mais próximos.

Namche

Namche Bazar

Por conta da altitude que é atingida logo no segundo dia, a recomendação é que se passe um dia aclimatando na cidade para evitar os efeitos do mal de altitude (conhecido como soroche aqui na América Latina ou acute mountain sickness, AMS, em inglês). O nosso grupo decidiu fazer uma caminhada de aclimatação na manhã do terceiro dia e depois seguir para dormir em uma cidade um pouco mais elevada, Khumjung, a 3.780 metros.

Em Khumjung, já estávamos saindo da trilha principal, que segue o Vale Central e vai diretamente até o Campo Base do Everest. Nós seguiríamos a trilha do Vale do Gokyo, que nos levaria até a pequena vila de Gokyo. A subida até Gokyo reserva visuais incríveis, com florestas de rododendros, a flor rosa que é símbolo do Nepal, e picos cada vez mais abruptos e altos. Ama Dablam, uma das montanhas mais lindas do Himalaia, acompanha boa parte do caminho. Também já é possível enxergar o próprio Everest, Lhotse e Cho Oyu, todos com mais de 8.000 metros.

a caminho do acampamento base do Everest

Edgar durante o trekking

Em Khumjung, um pequeno campo de futebol, também usado para o popular críquete, dá as boas vindas. No meio da cidade também pode ser divertido visitar o museu onde se pode ver um suposto crânio de yeti, o pé grande ou abominável homem das neves do Himalaia.

khumjung

Khumjung, a 3700m acima do nível do mar

Começamos o quarto dia andando sobre a neve que caiu a noite toda. O primeiro trecho em neve da trilha foi facilmente ultrapassado, apesar do desnível considerável. Passamos pela última parte de floresta da trilha, encontrando várias pequenas cachoeiras congeladas. Chegamos à vila de Dole, acima dos 4.000 metros, e nos juntamos aos guias e carregadores para cantar as músicas tradicionais do Khumbu e nos aquecer no refeitório do lodge. Em geral, nos lodges, a parte mais aconchegante é o refeitório, que costuma ser aquecido com a queima de fezes de iaque.

No quinto dia chegamos a Machhermo, onde está localizado um pequeno hospital, mantido por organizações estrangeiras, que se preocupa em atender turistas, guias e carregadores com problemas de altitude. Ali também é possível assistir palestras com os médicos residentes sobre os sintomas e perigos da altitude.

Saindo de Macchermo, no sexto dia, vamos finalmente até Gokyo, que já está bem próxima dos 5.000 metros acima do nível do mar. O caminho até Gokyo passa por três dos seis lagos sagrados para o budismo tibetano. Este lagos, quando não estão congelados, são incrivelmente belos, com águas de um azul turquesa profundo.

Gokyo é um vilarejo construído aos pés do Gokyo Ri, uma montanha de 5.360 metros, que funciona como um mirante. A população local afirma que o visual dali é um dos mais bonitos de todo o Khumbu. De fato, depois de uma subida intensa (apesar de não exigir nenhuma técnica de escalada, a inclinação é forte), se tem a sensação de estar cara a cara com Everest, Lhotse, Cho Oyu, Makalu, Pumori, Nuptse, Ama Dablam e uma diversidade de outros picos secundários.

Já bem aclimatados, no oitavo dia de trekking, cruzamos o glaciar Nigozumpa para chegar até um pequeno grupo de lodges, chamado de Tagnag (ou Dragnag). O glaciar ali não tem a mesma aparência do que vemos aqui na Patagônia. Ao invés do azul profundo do gelo, o que vemos é o cinza das pedras que cobrem o gelo. A sensação é que estamos atravessando um rio de pedras. Este dia é o primeiro em que os cuidados têm que ser redobrados, uma vez que atravessamos diversos trechos com pedras soltas e mini avalanches, causadas pela constante movimentação do glaciar.

A cena descrita logo no começo é exatamente o que nos esperava no nono dia de caminhada. A travessia do passo Cho La, que está a 5.420 metros, é considerado o trecho mais desafiador do roteiro. Começando bem cedo, diminuímos os riscos de problemas com pedras soltas na primeira parte do caminho (com o sol aquecendo o gelo, as pedras começam a se soltar das paredes inclinadas). Para atingir o ponto mais alto do passo, é necessária uma pequena “escalaminhada”.

Depois do passo, o próximo desafio é cruzar uma geleira, bastante escorregadia e cheia de neve fofa. No final ainda temos que descer até um vale e caminhar até Dzonglha, onde dormiríamos no lodge com a pior estrutura de toda a viagem. Em compensação, ficamos o tempo todo de frente a Ama Dablam, com toda sua imponência.

trail nepal

Grupo durante o trekking

No dia seguinte, saímos para chegar até Gorak Shep, voltando finalmente à trilha do Vale Central que vai até o Everest. Gorak Shep é a última vila antes do Campo Base. Daqui já começamos a acompanhar o famoso Glaciar do Khumbu, que começa na temida Cascata de Gelo do Khumbu, sobre o campo base.

vilarejo himalaia iaks

Pequeno vilarejo de Gorak Shep

Partindo de Gorak Shep, subimos o Kala Pattar, montanha que está a 5.545 metros acima do nível do mar, e oferece uma vista privilegiada do Everest. A subida também é difícil e deve ser começada antes do sol nascer, para evitar as nuvens que rapidamente cobrem o Everest depois que o dia começa. É do Kala Pattar que se tem ideia de quão monstruoso é o Everest, com seus 8.848 metros. O famoso alpinista Anatoli Boukreev e o jornalista G. W. DeWalt, no livro “A Escalada” que narra os trágicos incidentes da temporada de 1996 no Everest, descrevem “no topo do Kala Pattar, vários alpinistas sentiram a diferença entre ‘ir lá’ e ‘estar lá’ e o frio na barriga que muitos alpinistas sentem quando deparam com a presença física do objetivo adiante”.

glaciar

Glaciar

No último dia em Gorak Shep, seguimos para o tão aguardado Acampamento Base do Everest (EBC, Everest Base Camp), a 5.340 metros. Nesse dia, tivemos a pior nevasca de toda a viagem, que até então tinha corrido com um clima estável e favorável. Caminhar na neve fofa foi um grande desafio, mas chegar até o local onde os alpinistas que almejam chegar ao cume da mais alta montanha do mundo iniciam a escalada, vale incrivelmente a pena. É só importante lembrar que, nas palavras do nosso guia, não encontraríamos ali nenhum super homem, com piquetas, cordas, mapas e bússola na mão. Mais comum era ver a equipe de sherpas correndo de um lado para o outro, cuidando da organização daquele espaço. Ainda assim, o clima de apreensão, os sons ameaçadores da geleira do Khumbu em movimento, tudo isso colabora para tornar a experiência de visita ao campo base única e gratificante.

Campo base do Everest

Acampamento base do Everest

Assim, depois de visitar o campo base, no décimo segundo dia de trilha, começamos o caminho inverso. Dessa vez usando a trilha clássica, com lotação máxima nos lodges e trilhas mais parecendo avenidas. Na volta destaque para os túmulos dos alpinistas mortos no Everest, nas proximidades de Lobuche (incluindo o túmulo de Scott Fischer, famoso guia morto na temporada de 1996) e a visita à cidade de Tengboche, onde existe um dos mais bonitos e importantes monastérios budistas do Khumbu, de onde se acredita que o lama Sange Dorje começou a espalhar o budismo pela região. A trilha que leva até a cidade é uma das mais agradáveis de todo o caminho, com florestas e muitos muros com as famosas pedras marcadas com orações budistas.

O sentimento mais forte nos dias de volta é o de conquista. E também de saudade. Saudade do silêncio que marca a travessia, saudade dos monstros de pedra, que surgem abruptamente em cada trecho da trilha e faziam com que ficássemos sem ar por alguns instantes tentando captar toda a força e beleza da paisagem a nossa frente. Saudade do bom-humor e simpatia dos prestativos nepaleses que nos acompanharam durante os dezessete dias.

Quando entramos novamente no pequeno avião, de volta a Kathmandu, é quase como se estivéssemos acordando de um sonho agradável. E quando recomeçam as buzinas, as ofertas de artesanato, passeios de riquixá, a vontade maior é de voltar. Talvez nas próximas férias.

Montanhista, mergulhador e economista nas horas vagas.

    1 Seu comentário

    1. Viagem fantástica. Também fizemos o trekking agora em outubro e estamos fazendo uns posts no blog http://www.passaporteaberto.com.br.
      Dê uma passada lá. Abraço

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